Friday, October 17, 2014

Direitos e deveres de Amaya...

Há alguns factos que, sendo conhecidos, não me deixam de surpreender. Um é o facto de mentiras repetidas pelo menos três vezes ganharem o estatuto de verdade. Outro, é o facto da maior parte das pessoas só serem capazes de admitir aquilo que coincide com as suas crenças de partida. 

Vem isto a propósito da polémica gerada em torno de um artigo de opinião na revista Nature publicado por Amaya Moro-Martín. O artigo diz uma série de verdades com as quais poucas pessoas  discordarão. Por exemplo, que o investimento na ciência está a diminuir na Europa e que isso é um problema com repercussões sobre as gerações futuras. 

Não obstante, para dar músculo à narrativa a Amaya escorrega num argumento de fraca substância: que metade dos centros de investigação em Portugal poderia fechar em virtude de uma avaliação defeituosa por parte da ESF (European Science Foundation).  

Teve azar. Nos países Ibéricos é normal as pessoas esgrimirem argumentos roçando a difamação. Faz parte da retórica política e é uma prática tão difundida que ninguém leva a sério. Mas a Europa é diversa e não é assim por todo o lado. O Diretor da ESF, Jean-Claude Worms, exigiu que ela se retratasse e no caso de não o fazer ameaçou levantar-lhe um processo judicial por difamação. A Amaya em vez de explicar os fundamentos da sua afirmação resolveu fazer disto mais uma batalha política... Desta vez em nome da liberdade de expressão. E, claro, quem é contra a liberdade de expressão? Ninguém. E o coro dos indignados levantou-se mais uma vez.

O problema é que o conceito de liberdade, seja de expressão ou de outro tipo, implica, inevitavelmente, responsabilidade. Caso contrário tudo seria permitido. Incluindo as mais infames difamações sobre pessoas inocentes. Porque vivemos em democracia, a Amaya pode dizer o que lhe apetece. Mas pelas mesmas razões, o Diretor da ESF tem o direito de exigir a reposição da verdade. Afinal está em causa o seu nome, o prestígio da ESF e a credibilidade de 650 de investigadores de 46 países envolvidos no processo de avaliação. 

Mas porque digo eu que ela escorregou num argumento de fraca substância? 

Primeiro, as contas estão mal feitas. 50% dos centros que se candidataram a financiamento poderiam eventualmente não ser financiados mas nestes números incluem-se centros estabelecidos que perdem financiamento e centros novos que não chegam a ganhá-los. Nas últimas condições estão 62% das 90 propostas que foram apresentadas para criar novos centros. Portanto é incorreto falar em 50% de centros Portugueses a fechar. 

Segundo, não é inevitável que os centros que não passem na segunda fase da avaliação fechem. A decisão de fechar um centro não é da FCT. Se houve injustiça na avaliação e há centros excelentes que não são financiados, certamente terão outras fontes de financiamento (para não falar dos 6 milhões de euros que a FCT disponibilizou para apoiar a reestruturação de centros com avaliações abaixo mas próximas do ponto de corte). Mas será grave que nem todos os centros sejam bem avaliados? Não: Faz parte da lógica da avaliação científica. Que >50% das candidaturas passe à segunda fase é francamente mais generoso do que se observa em outros países onde semelhante tipo de fundos é distribuído por centros de excelência. 

Terceiro, é óbvio que se há uma proporção de centros que não obtém financiamento estrutural da FCT (um facto que sempre ocorreu nas avaliações anteriores) isso não se deve a uma avaliação defeituosa mas ao facto de haver uma decisão política de concentrar recursos em centros melhores deixando cair centros piores. Qualquer que fosse a avaliação que tivesse como objetivo descriminar para decidir sobre a distribuição de fundos teria este resultado. Como qualquer opção política esta decisão é passível de discussão. Mas seria bom discutir a opção política em vez de espalhar areia pelo ar acusando a ESF de não saber conduzir avaliações. Ninguém ganha com a tentativa de descredibilização dos processos de avaliação entre pares e todos temos a ganhar com a clarificação do debate das opções políticas. Uma questão que esmiucei em outro artigo neste blog. 

Enfim. Eu simpatizo com a Amaya. Tanto ela como eu fomos forçados a emigrar em virtude da incompetência dos governantes dos nossos países. Mas se ela acha que tem razão, que aproveite para demonstrar em sede judicial que a afirmação que fez é correta. Se vier a descobrir que afinal se enganou, que se retrate que a assunção do erro não faz mal a ninguém. Pelo contrário. É demonstração de virtude de caráter.

No comments:

Post a Comment